Essa besta já me conhece. Conhece-me tão bem que eu por vezes pergunto-lhe quem é que eu sou.
Eu sou cheio de defeitos e é por isso que me irrita a resposta “chavão” que as pessoas dão quando são questionadas sobre os seus defeitos: Sou teimoso.
Ser teimoso é um defeito parvo e que nos compromete pouco. Parece que temos medo de dizer os imensos buracos que existem na nossa personalidade. Eu convivo todos os dias com inúmeros defeitos meus. Se a “máquina” funcionasse na perfeição seriamos Deuses e vivíamos na plenitude e isso não acontece. Não acontece por isso mesmo, porque somos carregados de imperfeições. Eu encarno muitas personalidades inacabadas, fracas, incorrectas, rudimentares, coxas, omissas, frustradas…
Tenho dias que não me conheço e esses dias são raros. São os dias melhores da minha vida, devo confessar, porque parece que nada me mete medo. Estranho e suspeito esse sentimento: então onde é que anda a anómala besta? Essa besta já me conhece. Conhece-me tão bem que eu por vezes pergunto-lhe quem é que eu sou. Por isso é que receitas de banha da cobra me assanham os nervos. Livros de” como aprender a ser feliz” servem tanto como se uma ferida se acalmasse se a cobríssemos com areia. Não a vemos é certo, mas ela está lá, e tapá-la é ser-se ignorante ao ponto de acreditar em Perfeição. Ela não pode existir. Iria estragar tudo porque a partir daí não seria preciso nada. Qualquer coisa serve para colmatar uma lacuna e é por isso que existe.
É como quando me perguntam, como se tivesse carta branca, o que queria fazer, ou o que queria ser. Cada vez mais a resposta se encaminha para o sítio certo – não queria ser, nem fazer, nada. O “nada” parece simples mas é muito complexo: estar com uma boa companhia numa conversa cheia de labirintos e montanhas russas. E depois não estar com absolutamente ninguém, nem com a besta que tão bem me conhece. Passado um bocado já queria estar com todos ao mesmo tempo numa conversa fiada sem fundamento ou essência nenhuma. Posteriormente, ou antes mesmo disso, queria desfolhar um livro complexo. Não pelas palavras, eu conhecia o significado de todas porque na verdade as palavras caras só servem o ego do escritor, mas porque aquela desordem significaria algo de especial e fazem-me parar de ler e pensar no significado de cada frase. Queria ver o programa do Gordo, o Preço Certo, não para me armar em superior, mas para me envolver com o vazio e ver a leveza de um programa onde a Lenka continua com o mesmo sorriso, e já agora com um belíssimo par de pernas, e as pessoas trazem a despensa em peso como se quisessem que o Gordo fique ainda mais gordo. Por isso tenho poucas virtudes e a maior delas é não acreditar na felicidade. Ela existe, mas aparece em pequenos momentos, como se de um rastilho se tratasse, e quando desaparece é que nos apercebemos que ela passou por aqui. Temos sempre a tendência de imaginar o passado melhor do que o que foi e prever um futuro melhor do que vai ser. Já sei que me vão dizer que temos de viver o presente. Mas isso são balelas de livros de encantar. Uma cabra é que vive o presente porque não pensa. Eu ando sempre às voltas para trás e para diante e assim hei-de continuar envolto em nevoeiros de certeza nenhuma. Se calhar sou teimoso e esse não é, definitivamente, o meu único defeito.