Há um dos patos que passa o dia todo a afugentar o outro macho e, segundo a Tia, esquece-se por completo de fazer companhia às patas
Fomos visitar a Tia Sidónia. A visita costuma ser esporádica pela distância que nos separa: A Sidónia vive em Deixa-o-resto e nós em Lisboa. A Tia tem 84 anos e como sempre, se estivermos atentos e com disponibilidade, tem muito a nos ensinar. Falámos de temas que não são correntes no dia-a-dia porque não se encontra esta sabedoria ao virar da esquina. Começou por nos oferecer laranjas. Aceitámos de imediato e rapidamente me disse onde estava o escadote. Para os mais distraídos, como eu, poderíamos pensar que nos indicaria onde estava, à nossa espera, um saco de asas a um qualquer canto da cozinha, ou mesmo lá fora junto à porta da entrada. O escadote, ao invés do saco de plástico, dava-nos a possibilidade de escolher as melhores laranjas das diversas árvores que estavam plantadas ao longo do quintal. Enquanto me empoleirava na primeira árvore, a Tia Sidónia com uma vassoura em riste começou a ralhar com um dos patos que se cruzou no nosso caminho. E com toda a razão depois de nos explicar o porquê de tamanho raspanete: A Tia Sidónia tem dois patos e sete patas. Há um dos patos que passa o dia todo a afugentar o outro macho e, segundo a Tia, esquece-se por completo de fazer companhia às patas. Ou seja não quer que o outro se aproxime das patas, mas ele próprio, com esta obcessão, se afasta do essencial: As patas. Quantos de nós não nos afastamos da nossa própria essência esforçando-nos e desperdiçando energias com coisas, ou pessoas, que não interessam?
Assim, com laranjas e meia dúzia de patos, temos as nossas vidas espelhadas de uma forma tão básica e cruel que quando nos apercebemos chega a ser assustador. Guardei o escadote junto ao murete onde, inicialmente, o tinha ido buscar e já me dirigia para a porta de saída de mãos vazias quando me apercebi que me tinha esquecido das laranjas. Voltei para trás e aproveitei o momento para me despedir da Tia Sidónia com uma abraço apertado e naquele momento, e mais uma vez, o pato enfurecido corria desalmadamente atrás do outro. Fiz uma jura a mim mesmo: Ponho a minhas “patas” no fogo como vou estar cada vez mais atento às “patas” da minha vida.