Estamos em tempo que nunca existiram. Só existem na minha cabeça. Mas a raça humana tinha ido por outro caminho. O que hoje achamos normal e aceitável, nesta era tudo se dissipa. Não havia a cultura do casamento, não se pagava impostos, não havia hospitais, não havia varredores de rua. Tudo era diferente, tudo era melhor. Os sentidos estavam sempre em alerta. Tudo o que importava era o equilíbrio entre nós. A dor alheia era nossa. A nossa dor era de todos.
Não havia leis, não existiam regras. Não eram precisas. Todos sabiam o que deveriam ou não fazer. Parece fantasioso, mas era assim. As mãos nunca estavam estendidas a pedir auxílio. A mente só se focava em ajudar. O maior prazer não era esse. Esse era o único e verdadeiro prazer. Existiam milhares de espécies neste planeta. Todas pela mão da natureza. A morte entre espécies existia frequentemente. As leoas continuariam a caçar para comer. A águia encontraria o rato a mil metros de altura e o sapo continuaria a esticar a língua a qualquer insecto que lhe cruzasse o caminho. Nós sabíamos onde deveriamos andar para evitar os maiores perigos. Essa era a nossa única vantagem. Não tinhas setas ou paus para caçar. Não vivíamos na pré-história. Nem vivíamos nesta história que parece inventada. Isto tudo acontecia de verdade. Uma única verdade, porque não existia a mentira. Ninguém enganava ninguém. Nem sequer se conhecia o conceito de ocultar, esconder, fingir. Não existiam famílias, grupos, partidos, clubes, associações ou qualquer tipo de religião. Deus não existia. Ele não fazia sentido. Todos acreditavam em qualquer um e não havia um que não acreditasse em todos. É curioso que a palavra “futuro” não existia. Ninguém tinha planos, não se conhecia as expectativas. Não tínhamos nomes, lembro-me bem disso. A joana não ia ter com o Manuel e o Joaquim nunca saberia como encontrar a Teresa. Porque não a procuraria nem ia sentir a sua falta. O mundo não era mais pequeno do que o conhecemos. Também não era maior. Poderia dizer que era exactamente igual, mas não tenho a certeza. O que as pessoas faziam era definido pela própria natureza humana. Uns gostavam de uma coisa, outros de outra. Mas nunca se discutiam gostos ou preferências. Era assim. Aceitava-se a diferença de uma forma tão natural que nem sequer nos passava pela cabeça o quão absurdo seria alguém gostar de limpar as fezes dos mais velhos. Era impressionante como tudo se encaixava. Não existiam necessidades que não fossem absorvidas por esta comunidade. Não eramos muitos. Diria que não chegaríamos a três milhões. As gerações não eram impostas, as mães não eram escolhidas e os pais não tinham o dever de educar ninguém. O dever esse não era conhecido como obrigação. Eu criava, educava e ajudava quem se cruzasse pelo meu caminho. Lembrem-se que o apoio ao próximo era uma constante. No entanto, o desapego era aterrador. Ninguém sentia a tua falta e tu não sentias a falta de ninguém. Particularizando as coisas como costumamos fazer, ninguém poderia gostar mais de ti do que outro qualquer. Gostávamos de igual modo. Lembro-me de caras, de feições, de sorrisos. Se fosse um sonho diria que eu acordei quando alguém chorou. Foi mesmo ao meu lado. Todos paramos, assustados, ao ver um homem, com os seus 50 anos, agarrado à cabeça e a chorar. O choro era estridente. Uma espécie de corneta desafinada. O circulo que se começou a formar em redor desta criatura foi impressionante. Lembro-me como se fosse ontem. Uma onda gigantesca de gente foi atraída para aquele circulo. O homem continuava a chorar. Com os braços estendidos e com as mãos em cima dos ombros da pessoa da frente, diria que se criou ali uma energia única. Visto de cima, diria que o raio humano em redor daquele choro ultrapassava os 25 quilómetros. Passadas poucas horas todos, sem excepção, foram atraídos para aquela corrente de energia. Eu, como se recordam, estava mesmo ao lado daquele senhor. Foi divino o que ali aconteceu. Nunca tinha visto compaixão tão genuína e única. O homem, que estava agaixado com a cabeça entre os joelhos, começou lentamente a levantar-se. O choro continuava e diria que mais forte. Ergueu os braços para o céu estrelado e gritou “ AHHHHHH…. NUMEDE ALEZIU CONVERSILTER”
Mais uma curta metragem que tem tudo para não ser vista. http://seguesoma.blogspot.com/
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